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Violência étnico-racial e acolhimento

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NPG

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a violência se caracteriza pelo "uso intencional da força ou poder de forma ameaçadora ou efetiva contra si mesmo, outra pessoa, grupo ou comunidade, resultando em lesões, morte, danos psicológicos, alterações no desenvolvimento ou privações". No caso da violência racial, ela pode ser definida como atos violentos direcionados a grupos étnico-raciais específicos, como negros e indígenas.

No Brasil, assim como em outros países, a violência racial está diretamente ligada à herança da colonização e da escravização, que levaram à opressão de negros e indígenas por séculos. 135 anos depois da abolição legal da escravidão no Brasil, a discriminação, manifestada por meio da violência, perdura devido à negligência da sociedade em atender às demandas dos ex-escravizados e seus descendentes, negando-lhes os direitos de acesso principalmente à educação e a uma moradia digna, resultando em sua marginalização.

Para conversar sobre esse tema, convidamos a professora do Departamento de Ciências Sociais (Decso) da Universidade Federal de Ouro Preto, Sheila Dias Almeida, mestra e doutora pela Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que pesquisa políticas sociais, relações raciais e de gênero.

Quais os principais indícios da violência étnico-racial? Quais fatores estão por trás da violência étnico-racial no Brasil e quais grupos são os mais atingidos pelo racismo?

Os indícios próprios da violência étnico-racial podem ser percebidos, dentre outros elementos, através dos indicadores sociais, que no Brasil apontam para as desigualdades raciais e assimetrias existentes. Internações psiquiátricas, desemprego, trabalho informal e encarceramento são exemplos de situações predominantemente enfrentadas por pessoas negras, ou seja, do grupo racial composto pela junção de pretos e pardos. Embora a população negra seja majoritária no país, compreendendo aproximadamente 57% da população brasileira, ela não ocupa de forma proporcional espaços de poder, como as universidades públicas, o sistema judiciário e as direções de grandes bancos ou importantes empresas. Isso se deve à história do Brasil, enraizada na escravidão e no capitalismo forçado, que subjugou sobretudo pessoas negras e indígenas. Mesmo após a "abolição da escravidão", a população negra enfrenta desigualdades estruturais, sendo empurrada para favelas e cortiços, ocupando posições precárias no mercado de trabalho, sobretudo informal. Experimenta os piores índices educacionais, as piores condições de moradia, acesso à saúde e aos bens e serviços. Embora haja resistência e avanços, muito por meio da luta organizada do Movimento Negro Unificado, do Movimento de Mulheres Negras e também de setores progressistas da sociedade brasileira, ainda há um longo caminho a se percorrer para alcançar a igualdade e o bem-viver, independentemente da pertença étnico-racial. A persistência de denúncias de trabalho análogo à escravidão no país demonstra que a escravidão não foi efetivamente abolida e os casos de racismo que reverberam no Brasil informam que essa é uma batalha longe do fim.

Na interseccionalidade de gênero e raça, como atuar para reduzir os riscos de agressão contra as mulheres negras e estabelecer relações sociais equânimes?

A compreensão do que significa a categoria mulher requer uma análise das raízes que fundam a sociedade brasileira, como o patriarcado, por exemplo. Se a compreensão dessa categoria vier acrescida de negra, devemos analisá-la sob a perspectiva do racismo, do capitalismo, do patriarcado, da classe social etc. Ou seja, ser mulher negra nesta sociedade exige que tal análise seja feita sob os elementos citados, para que assim seja possível enfrentar as mazelas que acometem as mulheres negras, em proporções muito maiores do que as mulheres pertencentes a outros grupos sociais. Portanto, a categoria de interseccionalidade é uma ferramenta política que nos permite intervir de forma qualificada no enfrentamento das opressões sofridas pelas mulheres negras. É preciso confrontar a naturalização de que mulheres negras estão na base da pirâmide societária. Não está tudo bem saber que há um peso muito maior nas costas de alguém e grande parte da sociedade se sentir confortável com isso! A intersecção dos elementos que compõem o ser mulher negra nos diz que estar entre as maiores vítimas de feminicídio não é normal! Nos diz ainda que ocupar os piores cargos tanto do mercado formal quanto informal de emprego também não é normal! Ser as maiores vítimas de violência obstétrica, de hipertensão e diabetes também não é normal! Portanto, para além da conscientização política, a educação, a noção de pertença étnica ou racial também é fundamental. Só haverá mudança real na estrutura racista/misógina/patriarcal se esta for uma luta abraçada por toda a sociedade. Só haverá igualdade quando não houver nenhum tipo de violação de direitos. Mas também quando a sociedade olhar para as mulheres negras como merecedoras/alvos de empatia, solidariedade, respeito e quando reconhecerem seu potencial político. São mudanças necessárias, que devem estar presentes em todas as esferas da sociedade, desde a grande mídia até o cotidiano dos lares e famílias. Também nas redes sociais, na sala de aula, nos serviços básicos de saúde etc.

Quais adequações são necessárias no currículo escolar e nos processos pedagógicos para combater a violência étnico-racial? Como transformar o espaço escolar em um ambiente mais seguro e acolhedor?

Para promover a mudança na educação, é essencial priorizar a representatividade desde a infância. Crianças negras devem ter professores negros, mas apenas ter professores negros não garante a representatividade. Ou seja, o ambiente escolar deve estar preparado para lidar com a diversidade que vai desde o tom da pele aos tipos mais distintos de cabelos. Professoras/es negras/os e brancas/os, indígenas, não negras/os, devem ter, antes de qualquer coisa, a consciência dos processos históricos que fundaram a sociedade brasileira e do porquê de chegarmos em pleno século XXI ainda discutindo sobre as mazelas causadas pelo racismo. Há um exemplo de uma escola localizada em Salvador (BA), chamada Maria Filipa. É uma escola pensada pela professora Bárbara Carine, que trabalha e fortalece a identidade das crianças negras e não negras. As crianças têm contato com diferentes línguas, sobretudo, as africanas, como o Iorubá, por exemplo. Aprendem sobre o continente africano, sobre outras culturas, formas de ver e fazer ciência por outra ótica, que não a eurocêntrica, além de terem experiências sensoriais, com expressões culturais diversas, com o calendário cultural igualmente importante para as culturas contra-hegemônicas etc. Infelizmente, essa é uma das poucas experiências brasileiras. Aqui, o que predomina são escolas formais, baseadas em uma abordagem elitista, que despreza outros saberes em favor do conhecimento eurocêntrico. Há muita resistência em abordar uma educação libertária, ou, como diria Mészáros, "uma educação para além do capital". Imagina uma escola com uma educação baseada em saberes indígenas, que valoriza a oralidade, a observação da natureza e os empregam em vivências práticas do dia a dia? Portanto, se quisermos construir outras formas de sociabilidade, é fundamental romper com a visão verticalizada que o papel docente exerce e estabelecer uma relação horizontal entre professores e estudantes, reconhecendo, sobretudo, que o conhecimento não é absoluto e que existem diferentes formas de educação baseadas em outras culturas, identidades, crenças, vivências, relação com o meio ambiente etc.

Em alguns casos, a cultura africana é bem recebida socialmente, quando falamos da gastronomia e do samba, por exemplo. No entanto, as religiões de matriz africana têm o seu valor questionado e desconsiderado. Qual a sua percepção sobre essa diferença?

Esse desequilíbrio é resultado de uma ideologia difundida, principalmente pela Igreja Católica, que associava as práticas africanas a algo negativo. Ao longo da história, a religião cristã justificou a escravidão e o capitalismo, afirmando que negros e indígenas não tinham alma e precisavam expiar seus pecados através de castigos físicos, torturas etc.  A criação de um ser supremo, que está distante da sua criatura, impõe um medo que, ao contrário de permitir a evolução do indivíduo, desperta os seus instintos mais perversos. A igreja utilizou essas ideias perversas para controlar e subjugar essas populações, obrigando-as a abandonar suas crenças e adotar o cristianismo como possibilidade de salvação eterna. Esse estigma persiste até os dias de hoje, como evidenciado por casos de racismo religioso, em que os símbolos e práticas das religiões de matriz africana são mal compreendidos e, portanto, associados a práticas do mal. Há um respeito pela fé cristã (incluindo seus santos) e até pelos deuses da mitologia grega (pois são supostamente brancos, loiros e bondosos), por outro lado, há uma demonização de tudo que provém do continente africano. Eu compreendo os orixás como expressões da natureza, presentes na água doce, guardada por Oxum, tão vital quanto a água salgada, guardada por Iemanjá. E o que dizer da comunicação movimentada por Exú, senhor dos caminhos e do livre arbítrio? Ogum, aquele que guarda a ciência que desenvolve a tecnologia. Nanã, que compõe o barro, a lama, matéria-prima da nossa existência. Omolu, o senhor da boa amizade, que junto a Oxalá apazigua as guerras e permite a boa saúde. Oxóssi, que nos ensina que os meios de produção não devem servir para subjugar outrem, mas que devemos deter somente o necessário para a nossa subsistência. Ossanhe nos ensina a manipular as ervas e alcançar a cura. Iansã (minha mãe) nos ensina a finitude da vida, mas também que o ar é vital. Vimos isso durante a pandemia. Como foi duro não poder respirar livremente. E Xangô, que nos ensina o bom caráter e que nada fica sem retorno. É isso, sem respeito não há diversidade e sem diversidade não há democracia! A liberdade é um princípio inalienável, inegociável e essa liberdade dever ser real, inclusive para respeitar aquelas pessoas que professam uma fé diferente da minha, mas também aquelas pessoas que não professam fé alguma. Há uma tendência de demonizar a religiosidade africana. Portanto, respeitar a laicidade e combater o racismo religioso são tarefas urgentes, sem as quais nunca alcançaremos uma sociedade verdadeiramente livre de preconceitos e dogmas.

Os povos originários do Brasil sofreram e ainda sofrem um processo de extermínio. Como você avalia as possibilidades de proteção aos indígenas sem colocá-los em maior vulnerabilidade?


Primeiramente, é imprescindível devolver a terra aos indígenas, ouvir o que os povos originários têm a nos dizer e, a partir disso, respeitar o que eles desejam. E isso nos leva a refletir sobre como o racismo, a xenofobia e o machismo foram tão bem-sucedidos na sociedade. Ao longo da história, esses povos não tiveram representantes sentados à mesa de negociação, o que resultou na negação de direitos, incluindo a posse de terras. O Brasil possui uma lei de terras de 1850 que concedeu a posse apenas a quem possuía documentos legais, excluindo muitos indígenas e pessoas negras escravizadas. Isso levou a problemas como a posse ilegal de terras, ao trato da terra apenas como elemento a ser explorado e a se enxergar o lucro acima da vida. Chegamos a 2023 assistindo à situação alarmante vivida pelas comunidades indígenas e quilombolas, incluindo desnutrição e morte de crianças, assim como a presença de invasores de terras, grileiros e garimpeiros que usurpam as riquezas naturais de forma ilegal. Recentemente, temos o Marco Temporal, uma tese jurídica que limita o direito de posse da terra pelos povos indígenas. Esse marco é uma afronta à identidade de povos com saberes milenares. É mais uma tentativa ambiciosa de dar a posse da terra a quem de fato a ela não tem direito algum. Esse marco expressa a injusta relação de poder, presente nas mais distintas camadas. É sabido que quanto mais territórios uma pessoa ou um grupo tiver, maior poder eles exercem na sociedade. Na minha perspectiva, já passou da hora de discutirmos o que significa ter posses de terras. É preciso ouvir os povos indígenas, quilombolas, bem como os movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que possuem outra forma de se relacionar com a terra. É necessário aprender suas técnicas de cuidado ambiental e encarar a terra como bem finito, que se não for preservada, coloca em risco a nossa própria existência. Que possamos aprender mais com as grandes lideranças indígenas, como a ministra Sônia Guajajara, a deputada federal Célia Xakriabá, o ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro Ailton Krenak, a assistente social Eliz Pankararu, que nos ensinam a olhar muito além do étnico. Por fim, aprender com a ministra Marina Silva e abrir as mentes e os corações para dialogar com povos que resistiram à dizimação e ao genocídio que atravessaram os séculos e que hoje trazem consigo a generosidade de quem não quer nada além de respeito, preservação ambiental e a possibilidade de uma vivência plena, para além da prática predatória.

Há momentos em que percebemos esse tipo de violência vindo do próprio Estado, como a violência policial. Temos alguma perspectiva de mudança? O que é necessário para conseguirmos isso?

A história do Brasil é marcada por ações do Estado e da elite econômico-financeira, apoiadas pela grande mídia, que perpetuaram sistemas de opressão e violência. A polícia militar, por exemplo, foi criada para proteger os privilégios da elite e ao longo da história reprimiu movimentos de luta e liberdade, como o Quilombo de Palmares e a Revolta dos Malês. Nos dias atuais, temos um Estado e uma mídia que legitimam a violência policial contra corpos negros, como vemos em casos como o de Marielle, de crianças e adolescentes alvejados diariamente nas favelas ou de trabalhadores negros como Cláudia Ferreira, cujo corpo foi arrastado por mais de 200 metros pelo camburão da polícia militar numa manhã de domingo quando ela saía para comprar pão para seus filhos. E na tentativa de justificar tal barbárie, [o Estado e a mídia] se perguntam: "O que ela fez para merecer isso?" Ou então: "Quais são os antecedentes criminais dessa pessoa?" Enfim, o que precisamos ter em mente é que nenhum corpo pode ter sua integridade física ou psicológica alienada. Se pensarmos nos espaços acadêmicos, constantemente vivenciamos atitudes que materializam as opressões, seja com professores racistas, transfóbicos e machistas, seja com colegas que não descem do seu pedestal de arrogância e privilégios. Enquanto o Estado brasileiro não abandonar essa postura de falso combate às opressões e não promover um verdadeiro enfrentamento a essas violências, não teremos uma sociedade emancipada ou mesmo progressista.

No Brasil, temos leis que combatem o racismo. Na sua perspectiva, essas leis são efetivas? Se não, o que pode ser feito? E o que a negligência delas pode causar?

A efetividade das leis de combate ao racismo no Brasil é questionável devido à persistência de desigualdades sociais e econômicas, além da falta de inclusão de grupos marginalizados. Embora existam avanços legislativos, como a Constituição de 1988 e leis que promovem a igualdade racial e a inclusão, é necessário mudar a mentalidade daqueles que implementam essas leis nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Isso inclui a promoção de representatividade diversa nessas instituições, bem como o aprimoramento da operacionalização das leis e um acompanhamento constante da sociedade para garantir o respeito aos direitos de todos os grupos, como mulheres negras, indígenas, pessoas com deficiência, LGBTs, entre outros. Negligenciar a implementação adequada das leis de combate ao racismo (o Estatuto da Igualdade Racial; a lei que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira; a lei de cotas; a lei que torna o racismo crime inafiançável e que tipifica a injúria racial) pode resultar na perpetuação das desigualdades sociais, na marginalização e na violação dos direitos das pessoas afetadas pelo racismo. A falta de ação efetiva também contribui para a manutenção de estereótipos e preconceitos arraigados na sociedade brasileira e manutenção da exclusão, bem como limita as oportunidades de desenvolvimento para os grupos racialmente marginalizados. A legislação é boa, mas sua operacionalização não é muito eficaz. É necessário, inclusive, educar quem as operacionaliza, nas três esferas de poder, pois só assim teremos garantia de liberdade, igualdade, respeito e preservação da pluralidade dos povos que compõem esta nação.

Como pessoas não negras e não indígenas podem se engajar na luta racial, em uma perspectiva de empatia, reconhecimento e respeito? Como o terceiro setor pode colaborar com esse cenário?

Para se engajar na luta racial é necessário o reconhecimento da diversidade e do respeito. Ou seja, pessoas não negras e não indígenas devem desenvolver práticas para além da empatia, digo da realização da práxis antirracista. É abrir mão de privilégios que lhes confere poder e posicionar-se de forma antirracista e, ainda, abolicionista. É abandonar costumes e valores construídos a base de sofrimento e dor dos povos negros e indígenas e reconhecer o quanto a herança racial ainda é um amuleto para grupos sociais não negros. Como nos ensina Angela Davis: "não basta não ser racista, é preciso ser antirracista" se de fato almejamos outra forma de sociabilidade. E sobre o terceiro setor, entendo que, guardadas as devidas proporções, ele por vezes desempenha um papel fundamental nesse cenário, colaborando para a construção de uma sociedade justa e por vezes igualitária. Organizações não governamentais, associações e grupos de ativismo têm o poder de despertar consciências, provocar reflexões e romper com as estruturas de privilégio e opressão. O terceiro setor preenche lacunas deixadas pelo Estado, atuando em áreas necessárias para a manutenção social e onde a sociedade civil não pode permanecer em silêncio. A parceria entre o Estado e essas instituições é fundamental para impulsionar a mudança e romper com as barreiras estabelecidas pelo poder e pelos privilégios.

EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade.

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