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Por uma educação mais antirracista

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No dia 9 de janeiro do ano de 2003 foi publicada no Diário Oficial a lei que mudaria as diretrizes e bases da educação nacional, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. Primeiramente aprovada no ano de 1999, a lei foi proposta como uma das ferramentas para se construir uma educação antirracista no Brasil, de forma a resgatar a contribuição da população negra na história do país. Mais tarde, em 2008, foi publicado o texto que incluiria também o ensino de cultura indígena.
 
Muito movimento foi feito antes da implementação da Lei nº 10.639, que completa 20 anos. A concretização dessa regulamentação foi resultado da luta de movimentos antirracistas e da população negra do país. Um dos exemplos dessa luta é a criação da Fundação Palmares, em 1988 — um século depois da abolição da escravidão —, responsável por promover e preservar a cultura afro-brasileira. Outro marco na história do combate ao racismo foi a Conferência Mundial de Durban, na África do Sul, em 2001, onde foi firmado um acordo entre mais 170 países, incluindo o Brasil, a fim de adotar um plano de ação no combate à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância.
 
A educação é considerada a principal aliada contra o preconceito, além de ser a base social de formação de todos os cidadãos. A obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas é o reconhecimento do Estado acerca de uma falha histórica, que se agrava com o fato de a educação ter sido também uma das áreas a que a população negra do Brasil não teve acesso após a abolição da escravatura, juntamente com saúde, moradia digna e condições adequadas de trabalho. 
 
O convidado para uma conversa sobre o tema nesta retomada das entrevistas da seção "Em Discussão" nas mídias institucionais da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) é o professor do Departamento de Educação (Deedu) da UFOP Erisvaldo Pereira, doutor e mestre em Educação pela UFMG e integrante do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) e do grupo de pesquisa em formação de professores e relações étnico-raciais.
 
Professor Erisvaldo, para uma educação antirracista de qualidade, quais ferramentas podem ser utilizadas na área da educação e também de forma complementar?
 
A luta em prol da construção de uma educação antirracista no campo do ativismo do movimento social negro não é recente no Brasil. O que é relativamente novo em nossa sociedade é o fato de que não basta ser contra o racismo e não ser racista: precisamos ser antirracistas! Essa posição vem ganhando força a partir da sua formulação pela teórica negra estadunidense Angela Davis. No meu entendimento, as ferramentas para criarmos uma educação antirracista são três. A primeira ferramenta tem a ver com o estudo sistemático dos marcos teóricos historicamente construídos para compreender e analisar o racismo. A segunda ferramenta diz respeito aos marcos legais que regulamentam uma educação antirracista no Estado brasileiro. A terceira ferramenta são as práticas pedagógicas curriculares desenvolvidas para problematizar e ensinar atitudes antirracistas. Essas três ferramentas dependem de adesão e compromissos institucionais, traduzidos em termos de políticas de formação profissional e indução de medidas relacionadas ao financiamento, à avaliação e ao monitoramento de políticas de promoção da igualdade racial. Com efeito, o estudo dos marcos teóricos das relações raciais que discutem e analisam o racismo ainda é pouco conhecido até mesmo no campo das ciências sociais. Por sua vez, os marcos legais que instituem e fundamentam nacionalmente uma educação antirracista a partir das leis 10.639/03 e 11.645/08, do Parecer CNE/CP 3/2004, da Resolução CNE/CP 1/2004, embora compareçam com critérios de cumprimento na avaliação das condições de funcionamento de estabelecimentos de ensino, continuam sendo burlados pelas instituições por meio de informações genéricas e imprecisas sobre a observância do regramento legal. No meu entendimento, essas duas ferramentas são condições sine qua non para a elaboração e desenvolvimento de práticas pedagógicas que contribuam para uma educação antirracista de qualidade.
 
A profissão docente muita vezes é desvalorizada, seja pela sociedade ou até mesmo pelo próprio governo, porém, a educação é fundamental no desenvolvimento do país. Qual a importância do educador em uma formação contra o racismo, a xenofobia e as demais discriminações?
 
Conforme afirma o teórico Paulo Freire, a educação escolar por si só não tem o poder de transformar a sociedade, mas essa transformação também não se dará sem a escola. Uma educação de qualidade socialmente referenciada depende da valorização da profissão docente nas políticas estruturantes do desenvolvimento da nação brasileira. Isso significa dizer que não é apenas o Ministério da Educação que tem que pensar e construir políticas de valorização docente, mas todas as áreas do governo. Essa valorização implica em salários decentes, formação continuada de qualidade, cultura e lazer. Essas garantias não podem ser pensadas na lógica de despesas governamentais, mas como investimento do desenvolvimento nacional. A valorização do docente com salários decentes e formação inicial e continuada de qualidade socialmente referenciada são condições de possibilidade para ações educativas que operem na perspectiva interseccional contra todas as formas de discriminações e opressões. Vale salientar que o conhecimento das determinações da Conferência das Nações Unidas em Durban - 2001 vai contribuir bastante para uma formação antirracista.
 
As políticas educacionais passaram por situações diferentes ao longo da história. Em momentos recentes houve inúmeros cortes de verba na área da educação. Como você avalia o momento atual? Há um certo otimismo para o futuro dos professores?
 
Enquanto a educação não for prioridade de políticos em campanhas eleitorais, pauta do Ministério da Educação em diálogo com as áreas da economia do país, não vejo como alimentar um otimismo para o futuro dos(as) professores(as). Quando a educação passar a ser considerada e assumida pelas políticas macroestruturais, eu estarei otimista em relação ao futuro dos(as) professores(as). O regramento existente para garantir o piso salarial de professores(as) da educação básica não é cumprido pela maioria dos municípios, estamos há mais de uma década sem aumento salarial no ensino superior e, após todo esse tempo, o nosso reajuste de salário não atingiu 10%. Como pensar em otimismo em situações como essas?
 
O ensino de história e cultura afro-brasileira é um potencializador do combate ao racismo no país. Quais são os principais problemas que existem hoje na formação de um educador? E qual o caminho para superá-los?
 
Identifico uma série de problemas, mas o principal tem a ver com o fato de que nem as instituições educativas nem o conjunto dos docentes estão convencidos de que o ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena é um direito dos brasileiros. Esse convencimento passa pelas exigências de apropriação das ferramentas indicadas na primeira resposta desta entrevista. É importante ressaltar que a ausência do convencimento está diretamente relacionada ao funcionamento do racismo em todas as seus matizes. O sentimento e o talento dos africanos continuam sendo considerados do mesmo modo como Emmanuel Kant e Hume os trataram no século XVIII: como ridículos e sem demonstração de algo grandioso. Em razão disso, a inferiorização de negros(as) e de suas tecnologias sociais e culturais continuam funcionando na base da escolha e das motivações para não se ensinar conteúdos relacionados à história e à cultura afro-brasileira. O pressuposto de que o único projeto civilizatório exitoso é o do branco e europeu continua fundamentando um currículo eurocentrado e negando outros projetos e saberes tradicionais presentes em nossa cultura. Podemos verificar isso nas referências bibliográficas da maioria das disciplinas acadêmicas ministradas no ensino superior, os autores são quase sempre homens e brancos europeus ou norte-americanos.
 
Sabemos que, mesmo após 20 anos da Lei nº 10.639, sua aplicação não se concluiu, na totalidade. Quais caminhos seguir para que a lei tenha uma efetividade maior e para que mais conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira cheguem a mais escolas públicas?
 
Os cursos de formação inicial e continuada de professores(as) têm uma tarefa importante na implementação dessa lei. Não é possível pensar que a inclusão dos conteúdos relativos à Lei 10.639/03 vão ser incluídos em disciplinas e atividades curriculares das instituições de ensino superior apenas por constar de uma resolução do Conselho Nacional de Educação. Defendo que a inserção de uma disciplina específica no currículo é fundamental não apenas para o ensino, mas também para induzir programas de  pesquisas relacionados ao objeto em tela. A partir de 2006, muitas instituições de ensino superior fizeram concursos para professores(as) da disciplina Educação e Relações Étnico-Raciais. No entanto, começou a vigorar o entendimento de que a Resolução não obrigava a existência de uma disciplina obrigatória relacionada a esse campo de conhecimento. Esse entendimento resultou em um freio institucional tanto em relação à existência de uma disciplina obrigatória quanto na abertura de concursos para professores(as) na área. Um exemplo disso foi a retirada dessa disciplina como obrigatória no currículo do curso de Pedagogia presencial da Universidade Federal de Ouro Preto. Esse fato significou uma demonstração clara de que a maioria dos meus colegas de departamento não está convencida de que esse conteúdo é importante para a formação docente. Sou levado a afirmar que, sem o devido convencimento das instituições educativas e dos docentes de que essa lei garante um direito para os estudantes brasileiros(as), sem o devido financiamento, sem avaliação e monitoramento, não creio que haverá efetividade na implementação da Lei 10.639/03. Até porque, no Plano Nacional de Educação 2014, em sua Meta 7, a exigência de cumprimento das leis 10.639/03 e 11.645/08 no currículo escolar não tem sido suficiente para mudanças nessa realidade. Isso indica que o movimento social negro continuará tendo um papel importante como protagonista na luta pela garantia desse direito.
 
São comumente noticiados casos de racismo em sala de aula envolvendo discentes e docentes. Como o ensino de história e cultura africana pode combater esse problema na prática?
 
O racismo tem uma longa história de presença no seio da humanidade. Sua prática está diretamente ligada às relações de poder e formas de dominação do outro, por meio da inferiorização e negação da condição humana. O bem, o bom, o belo, o branco e o sublime foram identificados como características fundamentais da raça branca, colocada no patamar superior ao da raça negra. O mal, o ruim, o feio, o preto e o macabro foram estabelecidos como aspectos da natureza da pessoa negra. Um dos principais teóricos da raça no Brasil, fundador da medicina legal, Raimundo Nina Rodrigues, afirmou que há uma incapacidade mental nos negros para atingir altas abstrações. Ou seja: a pessoa negra tem uma baixa capacidade de intelecto. Esses conteúdos racistas estão na base de formação de professores(as), que é colonial e brancocêntrica. O(a) estudante negro(a) entra no espaço escolar com muitas desvantagens. Ele(a) vai à escola para ser civilizado na lógica de conhecimento dos colonizadores. Por isso, os componentes curriculares ignoram e repudiam crenças, saberes e tecnologias de origem africana. Os(as) docentes não demonstram o mesmo interesse de cuidado e de ensino pelos corpos de negros(as). O conflito racial revelado como racismo se apresenta no momento em que o estudante percebe e toma consciência de que a relação pedagógica é marcada pela negação das heranças históricas e culturais africanas. A única forma de combater isso é com a construção de uma educação antirracista como uma perspectiva política com fundamento histórico, teórico, legal e pedagógico. Em se tratando da construção de uma pedagogia antirracista em cursos de formação inicial de professores(as) que retiraram a obrigatoriedade de uma disciplina específica, temos de cobrar que as outras disciplinas obrigatórias deem conta de referências teóricas, atividades práticas e artefatos culturais como bonecas pretas, jogos africanos e instrumentos musicais que representem positivamente a cultura afro-brasileira na escola. Com esses dispositivos poderemos combater melhor o racismo na escola e nos rituais pedagógicos.
 
EM DISCUSSÃO - Esta seção é ocupada por uma entrevista, no formato pingue-pongue, realizada com um integrante da comunidade ufopiana. O espaço tem a função de divulgar as temáticas em pauta no universo acadêmico e trazer o ponto de vista de especialistas sobre assuntos relevantes para a sociedade. 
 
Confira todas as entrevistas publicadas desde 2021. 
 
Saiba mais sobre a aplicação da Lei nº 10.639 nos programas produzidos pela Rádio UFOP e pela TV UFOP:
 

 

 

 

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